António Cornetto e Solero de Limão era o melhor vendedor de gelados de Vila de Cima… até à semana passada. Sim, era o único vendedor de sorvetes num raio de 15 quilómetros, mas triunfou na vida apresentando maravilhas geladas às pessoas que, até então, só estavam habituadas a comer refeições quentes. O mérito não lhe pode ser tirado com a mesma facilidade com que se arranca dentes a um idoso octogenário.
Assados, guisados, refogados, grelhados, queimados e ocasionais violações. A realidade era esta quando, em 1975, António chegou a Vila de Cima. Proveniente da grande cidade, este empreendedor enfrentou dificuldades nos primeiros tempos: acusavam-no de vender a comida do Diabo, apesar de não saberem explicar como é que o Diabo consegue comer gelados no Inferno; era expulso de todos os estabelecimentos públicos e comerciais em que entrava, até os bordéis e a agência funerária; chegou a ser atacado por um urso, se bem que isso não teve nada a ver com a venda de gelados mas sim com a própria natureza do animal. Contudo, António não desistiu.
A sorte acabou por lhe sorrir, e tinha melhores dentes que um octogenário. Uma grande chuvada apanhou Vila de Cima com as calças na mão. Literalmente, foi no Dia da Corrida Tropeçuda, em que os habitantes competem entre si numa minimaratona de oito quilómetros com as calças ao fundo das pernas. A baixa da vila ficou alagada, e rapidamente a população se aglomerou na parte velha e alta, local onde se encontram habitações degradadas, a Igreja e o estabelecimento de venda de sorvetes. A Igreja foi uma opção deitada fora, pois toda a gente sabia que, todos os anos no dia da corrida, o padre gosta de ir à escola de Vila de Baixo para “fazer ajoelhar alguns hereges”. As habitações degradadas estavam, segundo os habitantes mais velhos, assombradas de zombies, e houve algum receio em entrar. Com razão, pois saíram mais depressa do que entraram. Um toxicodependente em ressaca passa bem por zombie. Restava a gelataria. Olhares receosos foram trocados, mas acabaram por entrar.
O ambiente era tenso e de cortar à faca. Literalmente, porque não havia gelados que chegassem para todos comer, logo tiveram de parti-los em bocado. Um rabino foi o primeiro popular a abrir o coração aos gelados, e predispôs-se imediatamente a cortar as pontas dos Calipos. Dois dias durou a enxurrada, o tempo suficiente para toda a gente perceber que António era um bom homem, com intenções nobres, e que os gelados até são bons. E a paz foi estabelecida entre ambas as partes. A gelataria ganhou um nome: “O gelo bem vistas as coisas é água solidificada, e com uns corantes por cima deixa um gostinho na boca parecido ao sabor das nádegas dos anjos”. O seu dono ganhou uma alcunha: Toni Perna-de-Pau. Ao princípio não gostou muito e protestou, mas depois de lhe arrancarem o membro inferior direito e o substituírem por uma prótese de madeira, lá viu que a alcunha fazia sentido.
Toni fazia sucesso, tinha centenas de clientes todos os dias, até o padre trazia os petizes hereges de Vila da Baixo para os ver redimirem-se dos seus pecados enquanto chupavam um Mini Milk. Até o Maximiliano, o toxicodependente de Vila do Meio, teve direito a um gelado em seu nome. Ou melhor, um gelado “super”, tal como ele chama a toda a droga que vende.
Infelizmente, os dias de graça acabaram-se para o António. Faz exactamente uma semana que um rapaz de sete anos entrou de skate pela gelataria a gritar “É pá, dá-me já um Epá ou dou cabo dos vidros da loja com o meu skate. Ouviste, ó velho?”. Toni atendeu o pedido o mais depressa que pôde, tendo em conta o coxear provocado pela perna de pau. Sabia que não podia entrar em luta com ele, pois além de velho e coxo, a Igreja ficava logo em frente, e o padre gosta tanto de miúdos que só ele lhes pode tocar. Para azar de Toni, a arca e o frigorífico tinham sido queimados na noite anterior por causa de uma trovoada, e foi obrigado a pôr todos os gelados numa arca de reserva que funciona a gerador. Todos… menos um. O único Epá que tinha estava no balcão da cozinha. Com medo de que a loja sofresse grandes estragos, entregou o gelado ao rapaz e rezou para que tudo corresse bem. Só que não correu, e o petiz rebelde acabou por morrer asfixiado na pastilha, demasiado dura. O padre foi o primeiro a aperceber-se do que tinha acontecido, e Toni entendeu de imediato que não era mais Toni, mas sim António Corneto e Solero de Limão, um assassino involuntário com aspecto malévolo de pirata.
Numa semana, António perdeu todo o respeito e confiança arduamente conquistados. Voltou a ser acusado de pactos com o Diabo, entre eles o Viannetta Triplo Chocolate; quando foi a uma consulta para ver se o coto da perna estava bom, foi apedrejado pelos próprios médicos; um urso atacou-o, violou-o, arrancou-lhe o pénis, arrancou-lhe a perna de pau e enfiou-lhe o pénis no coto. Mas isto foi só por causa da natureza do animal. E também porque o urso era o pai do miúdo do skate. Pelo menos agora António já não coxeia, cai.